Publicado por: janamenegaz | 27 set 2010

“Deus está vendo tudo e não faz nada”

Da janela de sua casa, morador da Favela Real Parque tenta apagar fogo utilizando um balde. A cena estampada no caderno Metrópole do jornal Estado de São Paulo deste sábado (25) é emblemática: retrata o desespero e a fragilidade do ser humano diante do fogo avassalador, ao mesmo tempo que revela a força e a fé que nos remete àquela metáfora do pássaro que tenta sozinho apagar o fogo na floresta. Mas este pássaro não foi um ato isolado, tampouco estava apenas fazendo a sua parte. Estava salvando o seu pedaço de mundo. O incêndio de sexta-feira (24) foi avassalador. 320 famílias perderam tudo, geladeira, fogão, cama, guarda-roupa. O lugar que chamavam de lar, e em que viveram experiências como família, tornou-se chamas. Hoje o que realmente precisam é de um teto e roupas para se protegerem do frio. “Não acredito que vou ter que começar tudo de novo”, disse um morador, expressando o drama de 1200 pessoas moradoras da Favela Real Parque.

Comentando o fato, o poeta fundador da Cooperifa, Sérgio Vaz desabafou em seu Twitter (@poetasergiovaz): “Revolta! A favela do Real Parque está pegando fogo. Deus está vendo tudo e não faz nada”. Pensei na hora: ‘bem humorado’! Em seguida, refleti sobre o assunto. Deus está em cada um de nós. Somos parte do todo. A vida em sociedade é uma grande teia, como disse o físico PhD Fritjof Capfra em palestra sobre novos paradigmas para uma vida sustentável: “…redes constituem o padrão básico de organização de todo e qualquer sistema vivente. Ecossistemas são entendidos em forma de teias de alimento (redes de organismos); organismos são redes de células; e células são redes de moléculas. Rede é um padrão comum a todo tipo de vida”.

Assim, se uma parte do nosso organismo está doente, o organismo todo pode ficar comprometido. Se a ponta do nosso dedo sofre um corte, sentimos, sangramos. Pode ser um mal pequeno. Mesmo assim precisamos parar e cuidar do ferimento. O mesmo acontece com a sociedade. Todos nós presenciamos cenas de violência, de miséria e de discórdias diariamente. Pela TV e jornais, quando não na esquina de casa e muitas vezes dentro da própria casa. Todos esses acontecimentos se refletem, de alguma forma em nós, nos diversos níveis da vida.

O incêndio na favela, que fica lá do outro lado da minha casa, não é um fato isolado que não reflete em nada na minha vida. Somos parte do todo. E o drama daquelas centenas de famílias, se reflete na minha vida e na vida da minha cidade. Pra não dizer do Estado, país e planeta. Como reflexão, sugiro a leitura da parábola “A ratoeira”, para compreender melhor a conexão de nossas relações em rede.

Acredito que, como parte do todo, não devemos esperar nem pelos governantes, nem que Deus desça sobre a Terra para ver a coisa acontecer. Enquanto centelhas dessa grande teia que é o Planeta Terra, podemos atuar com convicção no nosso dia a dia para imprimir mudanças no mundo, seja nos pequenos papéis ou em grandes atos. Enxergar o que precisa ser mudado, o que precisa ser feito, nos mobilizar e fazer a nossa parte. Que é o que nos cabe. E não é muito: apenas nos conscientizar de que alguém precisa fazer alguma coisa. E sempre existe alguém, solitário, como o pássaro no incêndio da floresta. Existe sempre uma mão solidária, ou “um dedinho de Deus” movendo as pecinhas e fazendo as coisas acontecerem no sentido do bem comum. Alguém se colocou naquela posição de ser tocado pelo dedinho de Deus, alguém agiu com solidariedade, alguém foi o conforto naquela hora amarga. Deus está vendo tudo. Mas nós precisamos ser as suas mãos trabalhadoras. Afinal, até quando ficar esperando que alguém faça alguma coisa? Estamos vendo tudo, e o que fazemos? Paramos para curar as feridas das nossas metrópoles ou passamos reto, acostumados com as condições “que a vida impõe”?

Está na hora da população se mobilizar, se organizar e se envolver nas questões do seu entorno, contribuindo de fato para o crescimento da sociedade tornando-se cidadãos mais esclarecidos e engajados nas causas sociais. Contribuindo para a melhoria da situação vigente. Com mais uma eleição, os santinhos também estão de volta. Não devemos esperar que algum deles seja a salvação para os problemas da sociedade. Acredito pouco nessas eleições, assim como acredito pouco que apenas a política é capaz de solucionar os problemas das metrópoles. Acredito, sim, na capacidade das pessoas de agirem e gerarem mudanças, em transformarem seus bairros e cidades em um lugar melhor para se viver. É preciso dar o primeiro passo em direção a essa mudança. Se Deus está vendo, não devemos esperar que ele faça alguma coisa. Nós somos os dedinhos de Deus e podemos ser suas mãos, transformadoras e curadoras.

Parábola “A ratoeira”

Um rato olhando pelo buraco na parede vê o fazendeiro e sua mulher abrindo um pacote. Pensou logo em que tipo de comida poderia ter ali. Ficou aterrorizado quando descobriu que era uma ratoeira. Foi para o pátio da fazenda advertindo a todos: “Tem uma ratoeira na casa, uma ratoeira na casa.”

A galinha, que estava cacarejando e ciscando, levantou a cabeça e disse:

– Desculpe-me sr. Rato, eu entendo que é um grande problema para o senhor, mas não me prejudica em nada, não me incomoda.

O rato repetiu a história ao porco.

– Desculpe-me sr. Rato, mas não há nada que eu possa fazer, a não ser rezar. Fique tranqüilo que o senhor será lembrado nas minhas preces.

O rato dirigiu-se à vaca e repetiu a história.

– O que sr. Rato? Uma ratoeira? Por acaso estou em perigo? Acho que não!

Então o rato voltou para a casa, cabisbaixo e abatido, para encarar a ratoeira do fazendeiro. Naquela noite ouviu-se um barulho, como o de uma ratoeira pegando sua vítima. A mulher do fazendeiro correu para ver o que havia. No escuro, ela não viu que a ratoeira prendeu a cauda de uma cobra venenosa. A cobra picou a mulher. O fazendeiro levou-a imediatamente ao hospital. Ela voltou com febre. Todo mundo sabe que, para alimentar alguém com febre, nada melhor que uma canja. O fazendeiro pegou seu cutelo e foi providenciar o ingrediente principal. Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos vieram visitá-la. Para alimentá- los, o fazendeiro matou o porco. Como a mulher não melhorou, muitas pessoas vieram visitá-la. O fazendeiro então sacrificou a vaca para alimentar toda aquela gente.

Na próxima vez que você ouvir dizer que alguém está diante de um problema e acreditar que o problema não lhe diz respeito, lembre-se: quando há uma ratoeira na casa, toda a fazenda corre risco.


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